terça-feira, 19 de junho de 2007

Para matar um grande amor

Muito se louvou a arte do encontro, mas poucos louvaram a arte do adeus. No entanto, não há gesto tão profundamente humano quanto uma despedida. É aquele momento em que renunciamos não apenas à pessoa amada, mas a nós mesmos, ao mundo, ao universo inteiro. O amor relativiza; a renúncia absolutiza. E não há sentimento mais absoluto do que a solidão em que somos lançados após o derradeiro abraço, o último e desesperado entrelaçar de mãos. Arrisco mesmo a dizer: só os amores verdadeiros se acabam. Os que sobrevivem, incrustados no hábito de se amar, podem durar uma vida inteira e podem até ser chamados de amor mas nunca foram ou serão um amor verdadeiro. Falta-lhes exatamente o Dom da finitude, abrupta e intempestiva. Qualidade só encontrável nos amores que infundem medo e temor de destruição. Não se vive o amor; sofre-se o amor. Sofre-se a ansiedade de não poder retê-lo, porque nossas cordas afetivas são muito frágeis para mantê-lo retido e domesticado como um animal de estimação. Ele é xucro e bravio e nos despedaça a cada embate e por fim se extingue e nos extingue com ele. Aponta numa única direção: o rompimento. Pois só conseguiremos suportá-lo se ocultarmos de nossos sentidos o objeto dessa desvairada paixão. Mas não se pense que esse é um gesto de covardia. O grande amor exige isso. O rompimento é sua parte complementar. Uma maneira astuciosa de suspender a tragédia, ditada pelo instinto de sobrevivência de cada um dos amantes. Morrer um pouco para se continuar vivendo. E poder usufruir daquele momento mágico, embebido de ternura, em que a voz falseia, as mãos se abandonam e cada qual vê o outro se afastar como se através de uma cortina líquida ou de um vitral embaçado. Há todo um imaginário sobre os adeuses e as separações, construído pela literatura e pelo cinema. O cenário pode ser uma estação de trem, um aeroporto (remember Casablanca), um entroncamento rodoviário. Pode ser uma praça ou uma praia deserta. Falésias ou ruínas de uma cidade perdida. Pode estar garoando ou nevando, mas vento é imprescindível. As nuvens devem revolutear no horizonte, como a sugerir a volubilidade do destino. Os cabelos da amada, longos e escuros, fustigam de leve seus lábios entreabertos. Há sutis crispações, um discreto arfar de seios. E os olhos, ah!, os olhos... A visão é o último e o mais frágil dos sentidos que ainda nos une ao que acabamos de perder. Uma grande dor, uma solidão cósmica, um imenso sentimento de desterro. Que se curam algum tempo depois com um amor vulgar, desses feitos para durar uma vida inteira...
Jamil Snege nasceu em Curitiba, em 1939. Graduou-se em Sociologia e Política pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Escritor e publicitário, dividia seu tempo entre os livros e sua agência publicitária. Publicou crônicas, quinzenalmente, no jornal Gazeta do Povo. Seus principais livros são “O jardim, a tempestade” (minicontos, 1989), “Como eu se fiz por si mesmo” (memórias, 1994) e “Os verões da grande leitoa branca” (contos, 2000). Morreu em Curitiba, em 2003.

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