domingo, 20 de maio de 2007

Velha amiga...

A estrada longa dizia tanto... A cada curva, a cada placa, a velha amiga chamava mais e mais... E o caminhão era o tradutor da mensagem... Ele o receptor. O caminhão o meio... Atrás dele somente as toras que outrora foram vida, agora viravam papel, um bloquinho de rascunho, uma carta de amor talvez. Elas que floresceram, viram chuva, frio, sol, canto de pássaros. Que foram confidentes de algum camponês que amava a esposa e os três filhos... Agora estavam atrás dele. Virando papel... A música country de Johnny Cash soando como um sonho pra ele, o radio baixinho, o px chamando qualquer um pro papo. A neblina deixando a noite mais linda, mais perigosa... E o único perigo naquela noite seria morrer sem amar. Passar aquelas frias horas com a mente vazia, com o coração duro. Não era ele agora, não mesmo. No painel do caminhão a foto da namorada, seu anjo, seu refúgio, seu porto seguro. A certeza de um amor que então ia se concretizando aos pouquinhos, sem pressa, com ternura, com paciência. Na Route 66, o tapete preto que cortava seu estranho país, ás vezes um motel, um café, um pedaço de torta de blueberry, um pedaço de galinha frita com molho barbecue. Parecia que June Carter cantava sentada ao seu lado então, sua linda voz aveludada amolecia o coração daquele menino de barbas e camisa xadrez vermelha.
Uma parada pra verificar os pneus, uma água no rosto pra espantar o sono, um cigarro pra esquentar os pulmões, uma olhada pra lua. Deu vontade de ficar ali olhando o céu, contando as estrelas, igual quando ele ficava com a filha deitado no chão da varanda... Contavam uma a uma, inventavam bichinhos, casas, ursos... A estrada chamou, o px passou informação de problemas à frente, óleo na pista... Cuidado redobrado... Mas a canção o fez esquecer da preocupação, vagar o olhar no fim da estrada, sem atentar que logo a frente estava a tênue fronteira entre viver e tentar tudo de novo...

Novo dia para uma vida nova

O dia raiou, e ele não pregou o olho um minuto sequer a noite toda... Pensando na amada, na possibilidade de um reencontro... Pensou muito na vida que lhe foi subtraída, tirada à força. Um banho quente, uma xícara de chá pra curar a gripe, um cigarro pra atrapalhar a cura... Assim sempre foi ele, ambíguo: por mais que tentava se ajudar, fazia sempre alguma coisa que acabasse atrapalhando. O dia começava quente, como o chá, como o coração. Dois dias antes pensou em acabar com tudo, por fim ao sofrimento que sentia corroendo por dentro. Até tentou, mas um anjo não deixou. Intercedeu, parou o processo. Olhou nos olhos do anjo, não via ternura, mas pena. Então esperou. Assim tinha sido sua vida até o momento, esperando, aguardando o momento certo pra lançar a rede, pegar o peixe grande.
Um telefonema, uma carta, um sinal de fumaça, aguardava pacientemente algo, não sabia o que era. Mas sabia que viria, cedo ou tarde, não importava, só a certeza que viria. Claro, inteligível, presente. Era só a confirmação do que ele sentia, o que o espírito já sentia. Tão forte como o drops de anis que ele sempre gostou.

sexta-feira, 11 de maio de 2007

Sangue de Maria

Ele sempre gostou daquele drink: gim com campari... E era isso que ele bebia enquanto via a banda de seus amigos tocarem aquele blues arrastado, cheio de paixão e melancolia. Seu velho amigo entre seus dedos, queimando no ar, castigando os pulmões, sendo sua única companhia naquela noite de junho. Pensou na vida, nas pessoas que ficaram pra trás, nas que passaram por sua vida. A bebida começava a fazer efeito, já era a quarta dose, a lágrima rolava em sua face. A canção agora lembrava situações, muitas boas, outras com final nem sempre feliz. O cara do bar trouxe mais uma dose. Ele a viu chegando, não estava sozinha... Não importava com quem! Ele puxou mais uma vez a fumaça pra dentro, tomou um gole, rangeu os dentes... Tomou coragem, outro gole!!! Pensou em levantar, ir conversar. As pernas não obedeciam. O cérebro ainda era mais esperto que o coração, duro pra se proteger, mole pra se meter em encrencas... Só ele e o garçom entendiam a situação. Ela quase o viu, por um relance. Parecia que na mesa do canto, a mesma que tantas vezes riram e se embriagaram. Não podia ser, ela ouvira falar que ele sofreu um acidente fatal de carro. Explodiu no meio de uma plantação de cevada ou aveia, ninguém nunca soube ao certo. O garçom apagou a luz sobre ele. Nem o nome dele sabia, nunca falara mais do que o preço da dose pra ele. Naquela noite era seu melhor amigo, soube interpretar a necessidade do momento. Nem perguntou. Trouxe outra dose, mais um maço de seu cigarro preferido, aquele mesmo que estava aos poucos derretendo seus pulmões... A canção continuou. A noite ainda começava, mas para os outros, não pra ele.

Band-aid e esparadrapo no coração...

Mal ele abrira os olhos, percebeu mais uma vez que estava no mesmo quarto de hospital. “Putz, se não estou enganado, já é a segunda semana que como essa comida sem sal, e pior: salada de pepino!!!” Agora avaliava a extensão da tragédia: um braço quebrado, o pulmão perfurado, e o que mais doía de tudo: a unha encravada no pé direito, de tanto cortar errado nos cantos. A enfermeira gorda mas sorridente vinha em direção dele mais uma vez com a bandeja de seringas prontas pra espeta-lo. “Hei Justine, dá pra ser um pouquinho generosa comigo? Deixa eu ir lá fora fumar um cigarrinho?” Ela sorriu, pôs sobre a mesinha e explicou que o turno dela acabara há dez minutos, que a novata do outro andar vinha render o posto. “lá vem outra sádica...” E não era que vinha a mulher mais fantástica da enfermaria cuidar dele, e do velho operado de hemorróidas ao seu lado!? Ela chegou próximo, sorriu, puxou o pijama que só cobria a frente dele, passou o algodão no exato local, viu a tattoo nas costas dele. “Que lindo esse dragão... Sempre tive vontade de fazer uma grande assim também.” Ele viu a deixa pra passar uma cantada na deliciosa enfermeira. “To vendo que vc curte uns desenhos também... É, essa eu fiz quando passei por Hong Kong quando tinha 21 anos. Bem que você poderia me mostrar a tua também, e eu talvez te ajudasse a escolher um novo lugar pra uma nova...” Ela deu uma risada, puxou um pouco do vestido pra cima, bem próximo da calcinha branca de renda. Ele, deitado, de bruços, de olhos arregalados, nem percebeu o momento que ela lhe espetava a bunda com o antibiótico, ardido feito vinagre... “Hei hei, vai devagar aí, minha bunda não é almofada. Pega leve aí...” Ela riu, deu um beijo na testa dele, ainda reclamando da dor e resmungando alguma besteira. O velhote ao lado se deleitava de rir da cena. Um idiota metido a conquistador cantando a enfermeira gostosona e levando a pior. “Palhaço, pelo menos saio daqui quebrado mas ao menos não vou ficar passando pomada no rabo por mais um ano...”

And born to be wild...

O sol forte batia no pára-brisa e fazia um espectro nostálgico àquela viagem... O velho carro respondia bem às pisadas no acelerador. A cada curva que ele fazia o pé apertava um pouco mais... A estrada o chamava pra aventura. Sozinho, como sempre foi. O rádio tocava uma música que o deixava mais excitado com tudo aquilo. Wilco... Em volta só campos, alguns tão bucólicos que beirava a nostalgia do momento, outros tão belos que o levavam a pensamentos longínquos. Tão longe que ele nem sequer percebeu o caminhão atravessado na pista. Aquele instante que antecedeu durou uma década toda. Ele via a velha amada próxima, andando de mãos dadas num bosque de velhas árvores. Viu a filha correndo à sua volta, brincando na grama, quase caindo no lago. Viu os amigos na semana passada numa festa, cantando e bebendo, vivendo o instante... Viu o momento do adeus, a briga, a raiva... Viu sua vida num segundo, quis parar o momento, voltar atrás. E voltou a si. “Se eu soubesse que terminaria assim, teria acelerado mais”... E assim o fez! Pisou mais fundo que pode, o velho carro atendeu ao pedido. Sempre esteve perto, junto, nunca se negou, e não era naquele momento que iria abandoná-lo... O estrondo foi ensurdecedor, a bola de fogo subia aos céus rapidamente. Tomou conta de todo terreno. O álcool que o caminhão transportava se espalhava rápido, consumindo tudo a sua volta numa velocidade espantosa. O espetáculo pôde ser visto os quilômetros, os bombeiros demoravam a chegar.

Um camponês via tudo embasbacado, nunca tinha presenciado algo tão belo, tão trágico, uma visão que jamais sairia de sua memória... Ele só não conseguia entender o porquê daquele jovem no velho Maverick sorria a apenas 10 metros da colisão fatal. E um sorriso angelical, de quem sabia o que fazia, que tudo ia mudar, que o sofrimento agora dava lugar a uma esperança maior, de paz, de silêncio, de retidão... E sorriu sim, o sorriso que por tanto tempo ele guardou fundo na alma, agora o coração falava “pare”, mas ele sorria e acelerava mais... E o velho senhor corria de encontro à tragédia, tentava ver algo em meio a fumaça, uma fisionomia, alguém... “somebody help!” ele gritava pro nada. Foi então que o inimaginável aconteceu: o velho Marevick não colidiu diretamente no caminhão!!! Estava sim tombado, amassado, mas vivo como seu ocupante. Por uma fração de segundo ele desviou da trajetória, resvalou na cabine do caminhão, girou no ar e parou capotado exatamente no meio da plantação de aveia. O que provocou a explosão foi o outro veículo que vinha da direção oposta. Lá estava o jovem, sangrando, agonizando, buscando ar no pulmão perfurado e encharcado de sangue, mas sorrindo, tentando acender o cigarro com a mão trêmula e ensangüentada. “Tem fogo aí?” Apagou...

domingo, 6 de maio de 2007

Oh happy day...

Ho ho ho... E o novo dia raiou... O despertador tocou, hora de pular, viver o novo, o “new happy day”... E tem sido assim com ele, só um dia após o outro, nada mais, viver o já, o presente. E ele tomou o café preto, forte, do jeito que ele se sentia agora... Forte, mas não amargo... Aquela garota mexeu com ele, deu um suspiro por ele. Passou a mão no cabelo dele, o surpreendeu, pulou no pescoço dele, deu um beijo nele no meio dos amigos dele, deixou todos espantados. Ele então, mais ainda!!! Céus, o que era aquilo?! Fazia tempo que alguém não o assustava assim...

E subiu no carro, o velho carro, seu velho companheiro que insistia em não deixá-lo na mão... Acendeu o cigarro, ligou o motor possante e acelerou fundo, pra deixar junto com a poeira que ia ficando pra trás as amarguras todas. E foi pra mais um dia...

Mais uma dose, menos uma noite...

E lá estava ele, sentado no canto do bar, a cerveja já começando a esquentar no copo, o cigarro acabando na mão, a fumaça subindo... Ao fundo Pixies tocando e a lembrança do velho amor amargando o coração. Mais um gole, mais um trago... A cada baforada de fumaça acompanha um suspiro. Alguém chegou, sorriu, um beijo no rosto... Parece que aquele momento apagou um pouco a triste memória.

E ela falou coisas legais, deu risada, se mostrou legal. E ele se animou, pediu outra cerveja, apagou o cigarro, abriu um sorriso. Mas queria mais ouvir que falar, não tava a fim de se abrir, demonstrar fragilidade, falar do coração partido, partido com o adeus da amada... Ah, a amada mais uma vez!!! Essa que tanto tempo esteve com ele, que ainda o acompanha, agora na memória... E ela percebeu. Assustou-se, ele não abriu a guarda, não conseguia ainda abrir as portas do coração pra um novo amor, o velho ainda estava lá, castigando, tomando um espaço que não era mais dele.

E assim ela foi, ele deixou, sabia que não ia adiantar nada ir atrás, nem conseguiu se expressar... A cerveja voltava a esquentar no copo. Mais um cigarro pra tentar sufocar esse coração que insiste em se manter apertado. Parece que quanto mais ele tenta esquecer, mais a lembrança o castiga.

E foi mais alguém legal, mais uma noite passou, ele só termina o copo e volta pra casa, agora dirigindo sem rumo nas ruas, pra sua cama que tantas passaram, mas que nenhuma tocou seu coração... Só seu grande amor...